sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

UGA entrevista Rão Kyao


"Em'Cantado" é o último trabalho de Rão Kyao e redefine a grande ligação do artista ao Fado. Para este espectáculo único Rão Kyao divide o palco com Camané, Ana Sofia Varela, Ricardo Ribeiro, Tânia Olero e Manuela Cavaco.

Pela primeira vez o mestre das flautas de bambu junta-se às vozes dos convidados dando-nos uma inovadora sonoridade num casamento perfeito.

Ao vivo no Centro Cultural de Belém no Grande Auditório dia 6 Fevereiro às 21:00h

Começou em 1976, tem uma carreira discográfica muito extensa. Este novo trabalho “Em ´Cantado”, é um regresso ao fado?

Tenho ligações com o fado desde que gravei nos anos 80 o “Fado Bailado”. Apareceu uma hipótese, através do “Em´Cantado” que foi o meu amigo António Pinho que sugeriu, de fazer umas composições minhas postas na boca de vários fadistas. Na “Mesa de Frades”, casa de fados em Alfama, onde vou tocar às vezes havia alturas em que existiam mais fadistas que clientes. Acontece que temos ali muitos bastidores e íamos conferenciando “Olha eu gostava daquele tema”, “Aquela canção ficava mesmo bem na tua voz” e foi-se formando um núcleo com seis fadistas que cantam vários temas meus. A história surgiu assim.

O Jazz ficou definitivamente para trás? É uma paixão antiga…


Quem ouvir o disco verificará que existe um lado B, uma parte mais instrumental onde a flauta de bambu se torna o elemento solista e que envolve muita improvisação. O jazz é uma música que me deu muita abertura mas que tem um expressionismo musical que tem muito a ver com a América. Quis dar mais força a versões tradicionais da nossa música e reinventá-la, continuar a nossa própria sonoridade daí eu não tocar jazz no sentido estrito mas interpreto certos elementos. Não tem, digamos, a parte melódica e rítmica específica do jazz.

Qual a influência que a Índia teve na sua carreira?


Muito grande. Toco um instrumento, flauta de bambu, com tradição em Portugal. Quem não tinha aquele fascínio em miúdo com o pastor com a flauta? Mas a sua escola é na Índia. Fui para lá estudar e especializar-me, era autodidacta neste instrumento. A música indiana tem aspectos muito a ver com as emoções, riqueza melódica e rítmica e isso influenciou-me. E no fundo aproximou os dois países, a música de Goa é uma fusão muito interessante e antiga das sonoridades portuguesas e indianas.

Como acha que este trabalho vai ser acolhido pelo público? Não é tão instrumental e mais cantado, como o próprio nome indica…

Já fiz coisas com Deolinda Bernardo e Isabel Silvestre por exemplo, mas a verdade é que não é regra e a minha voz é a flauta. Sou mais instrumental, sem dúvida. A surpresa deste disco para o público é exactamente essa: apresentar temas interpretados por vários fadistas, cada um ao seu estilo, às pessoas que me conhecem e serem presenteadas com uma novidade boa.

Tem alguma preparação mental ou superstição antes de entrar em palco?

Eu sou supersticioso mas não alimento isso. Não digo a ninguém se tenho determinada superstição para não passar, acredito que o homem deve ser livre mas há um certo determinado número de situações que pactuamos com elas porque no fundo queremos que tudo resulte bem. Entrar no palco implica uma nudez, uma dádiva tão grande que no fundo utilizamos todas as artimanhas que existem para irmos bem para o palco. Se me lembrar que tenho de entrar com o pé direito, entro com o pé direito. A superstição é uma coisa pessoal, está na mente de cada um.

Acha que a música tem uma dimensão espiritual? Algum alcance específico?


Toda a música é espiritual à sua nascença. É um universo que nos ultrapassa, é transcendente do qual certos elementos nós conseguimos ter acesso através de um processo completamente misterioso. Aprende-se certos aspectos da música mas há um factor que não, a faceta misteriosa da música. Pode ser utilizada erradamente ao serviço de qualquer coisa mas para mim o lado espiritual é fundamental e indissociável da música.

Com que artista nunca teve hipótese de trabalhar mas que gostaria de fazê-lo?

Vários. Gostava de colaborar com um músico indiano bom, não vou dizer este ou aquele… Com músicos do flamenco, do Norte de África. Há um artista chinês muito bom com quem quase tive para trabalhar num disco. Aqui em Portugal , está nos meus planos e já falámos sobre isso, fazer alguma coisa com o Pedro Jóia. Todos aqueles que são bons músicos e que haja hipótese de uma boa ligação, eu tenho o desejo de trabalhar com eles.

O que pensa da indústria musical actual, com downloads ilegais, já não há o hábito de comprar CDs. Situação difícil…

É complicado. Há uma indefinição, continua-se a fazer e divulgar CDs mas ganha-se com os espectáculos ao vivo. Os discos acabam por ser um cartão de visita para fazer os concertos porque isso é que não há internet nenhuma que consiga tirar as emoções que se sente num espectáculo ao vivo. Recuperou-se a faixa que de certa maneira é uma pena porque um LP ou um disco têm uma história, é um filme com vários episódios. Um disco é um todo e com esta nova visão dos downloads as pessoas passam a ser uma espécie de disc-jockey. Recordo com saudosismo os discos de rock, Pink Floyd por exemplo, que faziam discos temáticos e como só fazia sentido quando eram um todo e esse aspecto achava interessante. Tenho pena que se perca esse hábito, ainda pode ser reversível.

Já não há aquelas romarias a casas de fado como existiam antigamente, o hábito de ver o fado vadio. Sente saudosismo?

O fado tem sempre uma maneira de olhar para trás. A saudade é quando alguém lamenta qualquer coisa que perdeu, não é? Lembro-me perfeitamente de ouvir um fado muito antigo gravado pelo grande Manuel de Almeida e lembro ele dizer “E hoje ninguém o canta da forma como era cantado”. Ele gravou isto nos anos 50… Já nessa altura se dizia que os mais antigos é que teriam algo a dizer. O que quero salientar é que o fado tem que ter um aspecto imutável e um certo número de características para não o deixar de ser. Se começamos a tirar e a envolver influências de fora perde-se o essencial, a evolução tem que ter em conta a raiz.

Nota diferenças nos novos fadistas ou o espírito é o mesmo?

Os grandes fadistas actuais têm um respeito muito forte pela tradição mas ao mesmo tempo tentam não imitar porque há certas coisas que foram feitas anteriormente que dificilmente se pode fazer melhor que aquilo, é impressionante. É impossível reinventar! Ouvimos Amália, Manuel de Almeida, Fernando Farinha, Alfredo Maçoneiro, aquilo é um monumento que está ali. Há um conceito muito forte que não pode ser traído sob pena de deixar de ser fado. Tem de haver um conhecimento muito grande e ao mesmo tempo uma ideia de não repisar o que está feito mantendo o espírito de surpreender as pessoas.

Foi aluno do Colégio Militar, tetraneto de Ramalho Ortigão. Se não fosse músico, gostaria se ser escritor, por exemplo?


Se não fosse músico? Bem há uma coisa que me fascina muito, o mundo do vinho. Não é aquela coisa do beber ou ficar grosso, não é nesse aspecto. A riqueza do mundo do vinho, desejava saber os processos, acho que gostava de ser enólogo. Um homem que fizesse o seu próprio vinho, é um sonho que tenho e que gostava de realizar. É o Violino de Ingres, um grande pintor francês, que tocava violino. Quando digo isto significa aquela actividade que gostaria de fazer paralelamente à música.

João Maria Centeno Gorjão Jorge é um “desconhecido”. Sempre quis saber isto, de onde surgiu o “famoso” Rão Kyao?

É uma história engraçada. O meu irmão é mais velho que eu, quando eu nasci ele não conseguia pronunciar João e dizia Rão, “Olha o Rão”, coisa de miúdos. Mas a verdade é que pegou. O Kyao surgiu porque trabalhei como uma cantora que me chamava Kyao e ficou, pelo som o pessoal começou a tratar-me assim. Foi essa a razão.

Por Pedro Varela

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